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Conflitos profissionais e paradoxos legais

Uma de minhas Disciplinas que leciono na UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul é “Profissão Contábil e Contemporaneidade”

Uma de minhas Disciplinas que leciono na UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul é “Profissão Contábil e Contemporaneidade” cujo conteúdo trata da Ética Profissional no exercício da Profissão Contábil e de aspectos normativos que todo Contador obrigatoriamente deve seguir.

As profissões regulamentadas por lei, como é o caso da Profissão Contábil, através do Decreto-Lei n.º 9.295, de 27/05/1946, complementado pela Lei nº 12.249/2010, devem seguir a legislação e as normas ditadas pelos Conselhos de Classe. Na área contábil, um dos principais mandamentos é o Sigilo Profissional, onde o Contador não pode revelar a ninguém o que souber pelo fato de estar exercendo sua profissão. Obviamente que no exercício da Contabilidade o profissional vai ter acesso às informações confidenciais das empresas, isso pela natureza de seu trabalho, o que reforça essa questão do Sigilo. Lembrando que, conforme Art. 1179 do Código Civil, é obrigatória a contratação de um Contador pelas empresas (exceção feita ao MEI – Microempreendedor Individual)

CC Art. 1179 – O empresário e a sociedade empresária são obrigados a seguir um sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimonial e o de resultado econômico.

O tema deste Artigo é exatamente discutir conflitos profissionais e paradoxos legais que se criam, oriundos de certas regulamentações e, especificamente, sobre o Sigilo Profissional. Certamente este Artigo fará com que os leitores reflitam sobre este tema.

Para este Artigo, fui buscar alguns trechos de meu livro que trata destas questões Éticas e Normativas:

ÉTICA E LEGISLAÇÃO PROFISSIONAL - Para Contadores de Nível Superior. CURITIBA: APPRIS EDITORA E LIVRARIA EIRELI - ME, 2019. ISBN 978-85-473-2925-9.

Conflitos profissionais entre profissões existem e criam problemas éticos e legais como os que acontecem entre economistas, contadores e administradores e entre outras profissões. Tente o leitor responder a estas perguntas:

Poderá um economista elaborar e assinar um balanço?

Poderá um contador elaborar um projeto de viabilidade econômica?

Poderá um farmacêutico prescrever uma receita médica para um paciente?

Poderá um arquiteto elaborar um projeto de cálculo estrutural de um edifício?

Poderá um dentista colocar aparelho ortodôntico, sem ser especialista em Ortodontia?

Embora as respostas pareçam óbvias e conduzam para o NÃO, essas situações acabam ocorrendo, por vezes até, com permissão legal, podendo provocar prejuízo a quem contrata os serviços mencionados. São situações perfeitamente previstas em legislação de profissões regulamentadas e com Conselhos de Classe atuantes na defesa dos interesses de cada profissão e do tomador dos serviços.

A título de ilustração, trago alguns exemplos paradoxais marcantes, sob o ponto de vista da Ética, que acontecem cotidianamente na vida das pessoas.

O Ortodontista na Odontologia – o Ortodontista é o profissional que após formado como Cirurgião Dentista, faz uma especialização de dois anos chamada Ortodontia e Ortopedia Facial, na qual ele vai estudar o funcionamento dos maxilares e todos os fenômenos ortopédicos correla­cionados à perfeita oclusão facial (encaixe da mordida). Esses profissionais, graças à técnica aprendida na especialização, conseguem corrigir proble­mas de mordida cruzada, dores mandibulares, problemas estéticos sérios. O problema ético que surge é que na legislação pertinente à profissão de Odontólogo e no próprio Código de Ética Profissional da profissão não consta nenhuma restrição a que um Cirurgião Dentista coloque aparelhos ortodônticos em seus clientes, mesmo sem ter cursado a especialização, desde que não se anuncie publicamente como ortodontista. Essa situação acaba trazendo eventuais problemas a pacientes que fizeram tratamento ortodôntico com profissionais não especializados, porém esses profissio­nais não estão agindo de forma contrária a legislação, mas é um flagrante problema de cunho ético. É um paradoxo legal.

O Jornalista – profissão regulamentada e que também dá origem a um paradoxo. Não existe mais a obrigatoriedade de diploma para exercer a profissão. Era muito comum ver artigos assinados por profissionais das mais variadas áreas de conhecimento que não tinham a formação de jornalista, embora houvesse a regulamentação dizendo que só poderiam assinar maté­rias em jornais e revistas quem tivesse a formação mencionada. Entretanto médicos publicavam e assinavam matérias de sua especialidade. Eu mesmo já publiquei e assinei inúmeros artigos sobre Ética Profissional dos Contadores em jornais, revistas e sites de Contabilidade. São matérias técnicas que os jornalistas não teriam conhecimento suficiente para publicarem, pois não estudaram para isso. O conhecido ex-jogador de futebol e treinador, inclusive da Seleção Brasileira de Futebol, Paulo Roberto Falcão, que escrevia diariamente no Jornal Zero Hora de Porto Alegre/RS, obrigava a Empresa a pagar multa mensal aos órgãos de classe dos jornalistas, pois o profissional mencionado não tinha a formação de jornalista, no entanto era profundo conhecedor da matéria que escrevia em sua coluna diária. Resta a indagação sobre esta questão dos danos possíveis que possam ser causados à população em geral e, especificamente, àqueles de menor expressão cultural, se pessoas sem a devida formação escreverem sem respeitar os preceitos éticos e técnicos ensinados nas Escolas Superiores de Jornalismo, já que não é mais exigido o diploma para exercer a profissão. Caberá então às empresas jornalísticas filtrar e avaliar quem poderá exercer a função, dependendo de seu engajamento com a qualidade da informação, e não somente o apelo para compra de jornais e revistas. Esse é outro paradoxo legal de signifi­cativas consequências.

O Músico – a Constituição Federal diz que é livre a expressão cultu­ral e da arte (Art. 5 – Item XIII). Mas um músico que resolve tocar seu violão e cantar em um bar noturno poderá ter problemas com a fiscalização da Ordem dos Músicos, caso este músico não tenha registro lá. Embora já haja jurisprudência em favor destes músicos, exatamente baseada na Constituição Federal, a Ordem dos Músicos ainda tenta fazer valer seu entendimento de que precisa registro para se apresentar profissionalmente. Eu já presenciei casos de fiscalização da OMB adentrar em um estabelecimento noturno com polícia e dar voz de prisão ao músico por exercício ilegal da profissão (sem registro profissional) e ainda aplicar pesada multa ao estabelecimento e receber ameaça de interdição do local. Da mesma forma que já ocorreu com a situação dos jornalistas, existe movimentação no sentido de abolir legalmente a necessidade de registro dos músicos, com base na mesma argumentação constitucional.

Sigilo Médico – Paradoxo Ético Brutal – Morte de 150 pessoas

Fonte: Notícia do site G1 – 31/03/2015 – https://g1.globo.com/

Este caso que passo a relatar é muito emblemático e marcante e trata da questão do Sigilo na prática da Medicina. É muito difícil explicar, sob ponto de vista da ética, o acidente aéreo que provocou a morte de 150 pessoas em 24/03/2015. O voo Germanwings* 9525, da rota internacional Barcelona, na Espanha, à Dusseldorf, na Ale­manha, caiu nos Alpes Franceses, indo de encontro a uma montanha a 650 km/hora a 100 km de Nice. A bordo da aeronave estavam 144 passageiros e 6 membros da tripulação, todos mortos no terrível acidente.

*Germanwings era na época uma empresa subsidiária da Lufthansa, renomada empresa aérea alemã.

O copiloto, aproveitando uma ida ao banheiro do comandante e piloto do voo, colocou em ação um plano de suicídio, possivelmente engendrado há tempo, apenas aguardando ocasião propícia para tal. O comandante ao deixar a cabine de comando orientou o copiloto a iniciar procedimentos de descida para pouso em Dusseldorf. Ao sair, ouviu-se (pela gravação da caixa preta do voo, posteriormente) a porta da cabine fechar por dentro. Poucos minutos depois, o avião fez um movimento brusco de descida, comandado pelo copiloto, que levou o avião, a 650 km/h, direto para um choque frontal com uma montanha, matando todos a bordo.

Segundo as investigações, o copiloto Andreas Lubitz já havia sido tratado alguns anos antes por tendências suicidas motivadas por um epi­sódio depressivo de elevada gravidade e de conhecimento da empresa. Este episódio, que ocorreu em 2009, fora relatado à escola de treinamento de voo da empresa na ocasião por meio de um documento apresentado pelo copi­loto e que continha em anexo um atestado médico de aptidão para pilotar.

As investigações também apuraram que meses antes do acidente o jovem copiloto buscou tratamento psiquiátrico com alguns médicos. Consta que, inclusive, um desses psiquiatras havia feito uma prescrição de medicamentos e recomendado que ele não voasse profissionalmente em decorrência de seu estado.

Aqui se levanta a questão ética paradoxal: se o copiloto estava em estado tal que o médico psiquiatra recomendou que ele não voasse profissionalmente, será que o copiloto teria discernimento suficiente para acatar a orientação médica? A resposta parece clara e óbvia: NÃO! O copiloto, sem ter as perfeitas condições de discernimento, desconsiderou a recomendação de seu médico e levou adiante seu plano suicida e, quando encontrou opor­tunidade de ficar sozinho na cabine de comando, o executou, levando-o, juntamente com outras 149 pessoas à morte.

Sabe-se que os médicos, em respeito ao seu código de ética, assim como os contadores, têm o dever do sigilo sob pena de processos éticos com punições que podem variar de intensidade. A dúvida que pode nos intrigar é o porquê deste médico não ter alertado a companhia aérea do estado de seu paciente e que seria muito arriscado ele pilotar nas condições em que se encontrava. Parece óbvio que o médico psiquiatra não fez esse contato com a empresa por questões éticas que o impediam, pelo dever do sigilo. E este é o grande paradoxo: se o médico tivesse sido ANTIÉTICO e denunciado à empresa o estado de seu paciente, provavelmente teria salvo a vida deste e de mais 149 pessoas.

Não se trata aqui de defender atitudes antiéticas, mas de refletir sobre o ocorrido e possivelmente reavaliar determinadas normas em função de circunstâncias como as relatadas nesse caso e fazer as entidades responsáveis pela elaboração de normas profissionais e dos códigos de ética profissionais avaliarem a fundo a pos­sibilidade de ocorrências como essa e estabelecerem exceções que permitam aos profissionais agirem em nome do bom senso. No Código de Ética Médica brasileiro, elaborado pelo CFM – Conselho Federal de Medicina, que possivelmente tenha condições semelhantes na Alemanha, o Artigo 73 traz expressamente que é proibido ao médico “Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.” O código não explica o que venha a ser “motivo justo” e obter “consentimento, por escrito, do paciente” neste caso seria praticamente inviável. Se o psiquiatra em questão tivesse feito um contato com o médico da empresa aérea, alertando da condição de seu paciente, possivelmente o acidente não tivesse ocorrido.

Como observação final a este Artigo, vindo ao encontro do que escrevi no parágrafo anterior, a profissão contábil ganhou, através da RES CFC 1530/2017 uma exceção à obrigatoriedade do Sigilo Profissional quando é determinado aos profissionais que, de forma obrigatória, comuniquem operações e propostas de operações com indícios de ocorrência de ilícitos. Isto deverá ser feito diretamente ao COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras, atualmente vinculado ao Banco Central do Brasil. É óbvio que, ao proceder desta forma, preconizada pela RES CFC 1530, o profissional de Contabilidade estará quebrando o dever do Sigilo, porém estará fazendo tal prática com amparo de seu Conselho de Classe, sem qualquer risco de punição por isto, e prestando um favor às autoridades e à sociedade brasileira.

Dúvidas e comentários podem ser encaminhados para

Fernando Cafruni André

fernando@universalsaude.com

whatsapp (41) 9 8408 9115

Bacharel em Ciências Econômicas e Ciências Contábeis

Empresário do setor de saúde – www.universalsaude.com

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais

Disciplinas de

èContabilidade para Pequenas e Médias Empresas

èProfissão Contábil e Contemporaneidade (Ética e Normatização na Profissão de Contador)

èOrientador de alunos para elaboração de TCC

Autor dos livros:

ÉTICA E LEGISLAÇÃO PROFISSIONAL - Para Contadores de Nível Superior. Curitiba: APPRIS EDITORA E LIVRARIA EIRELI - ME, 2019. ISBN 978-85-473-2925-9.

CONTABILIDADE PARA PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS - Um Enfoque Gerencial para Contadores, Administradores e Empreendedores. São Paulo: ACTUAL EDITORA - GRUPO ALMEDINA - PORTUGAL, 2019. ISBN 978-85-62937-27-9.

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