Foi publicada no dia 5 de agosto a Lei nº 12.462, fruto da conversão da Medida Provisória nº 527-B/2011, que instituiu o "Regime Diferenciado de Contratações Públicas" (RDC), tido como pedra de salvação à contratação pela administração de obras e serviços necessários à realização da Copa do Mundo 2014 e às Olimpíadas 2016. Tem-se, assim, a instituição de regras próprias para a licitação e para os contratos administrativos cujo objeto importe a esses eventos esportivos.
Desde sua proposição inicial, o RDC vem suscitando intensos debates. A grande maioria deles, no entanto, restritos ao sigilo do orçamento de referência das obras, conforme previsão do art. 6º do texto. Sem embargo da relevância desse tema, é certo que, no emaranhado de normas que compõem o RDC, o famigerado sigilo orçamentário está longe de ser o maior problema porquanto se permite o livre acesso dos órgãos de controle a essas informações. A menos que se admita que tais órgãos não observem a devida lisura ou não desempenhe corretamente o seu papel, não há muito o que temer em termos de favorecimentos indevidos. Afinal, se a preocupação é o tráfego indevido de informações, este pode ocorrer independente do nível de publicidade que se dê aos dados que orientam o certame, se um particular obter essa informação antecipadamente.
Antes, a par de uma ou outra medida realmente interessante à modernização do regime contratual da administração pública e que já vinha encartada em legislação de contratos específicos (concessões, PPP's), o atropelo na aprovação do RDC criou um regime altamente fragmentado e que contempla uma série de dispositivos que pouco ou nada contribuirão à eficiência do processo licitatório e da gestão contratual, trazendo consigo riscos relevantes ao sucesso dos certames e das avenças sujeitas a sua aplicação.
Pela sua própria urgência, o RDC mais parece um coquetel de remédios contra o grande mal da morosidade na contratação administrativa. É dizer: juntaram-se cada um dos institutos - novéis ou não - que isoladamente pretendem conferir maior celeridade numa única dose, sem nenhuma prescrição médica. Assim é que, tal qual seu equivalente farmacológico, os efeitos desta automedicação tendem a ser desastrosos. A reunião precipitada dessas medidas pode acabar prejudicando o próprio sucesso da contratação, senão na deserção da fase licitatória, nas dificuldades que certamente acompanharão a execução contratual.
Tanto pior é a própria dúvida que paira sobre a competência da União para editar um regime específico de contratação aplicável a Estados e município, sendo certa a limitação constitucional que restringe sua competência em matéria de licitações e contratos às normas gerais (art. 22, XXVII), o que já o fez por meio da Lei nº 8.66, de 1993. Parece-nos que, no confronto entre seguir a Lei nº 8.666 ou o RDC, Estados e municípios estão adstritos ao primeiro diploma, não devendo obediência ao RDC, norma notadamente de caráter específico e que, por esta razão, vincula apenas a União.
E ainda que quisessem acompanhar o novo regime, Estados e municípios encontrariam sérias barreiras no próprio texto do RDC, que frequentemente se reporta à ulterior regulamentação. Basta dizer que temas da maior relevância à aplicação do novo regime -como os critérios de participação de consórcios e para julgamento da proposta econômica -são delegados a posterior regulamentação pelo Executivo Federal. Também não se poderá utilizar os denominados procedimentos auxiliares (pré-qualificação, registro de preços, etc.), tendo em vista que todas as regras procedimentais foram delegadas à futura regulamentação. Vai daí que a aplicação plena do RDC depende de atos do Executivo Federal, o que já é algo a se pensar, pois a importância e segurança que deve haver em termos de legislação licitatória e contratual é incompatível com a delegação de temas relevantes nesta seara à mera disposição do Executivo.
Com efeito, o regramento sobre licitações e contratos deve ser o mais transparente e sólido possível, tendo em vista a expectativa dos particulares e da própria Administração com as diretrizes a seguir na condução dos certames e na gestão das avenças. Deixar à livre disposição do Executivo a definição de matérias das mais sensíveis diminui gravemente a segurança jurídica que deve sempre acompanhar as normas licitatórias e contratuais. Fica permitida a mudança das regras do jogo a qualquer momento, o que criaria um ambiente insustentável ao regime da contratação administrativa diante do aumento do risco de quem se dispõe a contratar com a Administração.
E, mesmo após a edição desses decretos presidenciais, é certo ser imprescindível a regulamentação dos demais entes federativos para que o RDC possa ser plenamente aplicável às licitações e contratos de Estados e Municípios, tendo em vista que tais entes não poderão aproveitar a regulamentação do Executivo Federal, aplicável exclusivamente à União.
Mesmo quando não remete expressamente à posterior regulamentação, o texto pendente de sanção ainda encerra dispositivos de nenhuma valia, como é o caso de todos os incisos do parágrafo 1º do art. 4, que, sob a peja de incorporar elementos ambientais e urbanísticos às licitações públicos, restringiu-se a menção à legislação geral sobre a matéria, furtando-se daquilo que realmente é relevante, que é o devido detalhamento da aplicação dessa legislação geral às licitações e contratos. Muito mais relevante do que mencionar que o impacto ambiental será mitigado por compensações e condicionantes - o que já consta da legislação ambiental - seria tratar de que forma o respectivo custo seria considerado no âmbito da equação econômico-financeira do contrato.
Enfim, na forma com a qual foi concebido - precipitada e sem a devida discussão - o RDC desperdiça a chance de se promover uma real e efetiva revisão das regras de contratação da administração, sabidamente anacrônicas e extremamente burocráticas. Não fosse apenas isso, sua aplicação traz consigo um risco evidente e relevante de desestímulo à participação de interessados, prejudicando a eficiência das licitações e contratos administrativos.