"Você está demitido!" Quantos trabalhadores já não escutaram essa frase e pensaram em dizer o mesmo para o seu empregador?
A lei trabalhista brasileira permite que o trabalhador "demita" o patrão em alguns casos: quando ele não cumprir o contrato de trabalho, deixar de pagar salário, atrasar constantemente o recolhimento do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) ou até deixar de registrar o funcionário em carteira.
É a chamada rescisão indireta, prevista no artigo 483 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). O funcionário pede para rescindir seu contrato de trabalho sem perder o direito a verbas rescisórias.
No pedido de demissão "normal", sem justa causa, o trabalhador não tem direito a receber, por exemplo, FGTS nem seguro-desemprego.
Se comprovada falta grave da empresa, como ser ameaçado, agredido fisicamente ou exposto a situações em que fica caracterizado o assédio moral, o empregado também pode pedir a "demissão" indireta do patrão.
Em casos de assédio moral conjunto de condutas abusivas, frequentes e intencionais que atingem a dignidade da pessoa e a humilham, além da rescisão indireta, é comum o pagamento de indenizações por dano moral.
O aumento de pedidos de rescisão indireta chama a atenção de juízes, advogados e especialistas em mercado de trabalho. Levantamento do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) da 2ª Região (Grande SP e Baixada Santista) mostra que o número de ações de trabalhadores abertas para pedir a "demissão" do empregador praticamente dobrou nos últimos quatro anos: de 19.888 em 2009 para 38.189 no acumulado de janeiro a novembro de 2012.
"É um estranho indicador de descumprimento da legislação", diz o advogado trabalhista Luis Carlos Moro.
Os pedidos de rescisão indireta no ano passado, no acumulado de janeiro a novembro, representaram 11% do total dos processos (349.198 ações) que ingressaram no TRT no período.
MERCADO AQUECIDO
Um dos motivos que podem ter contribuído para o aumento no pedido de rescisões indiretas é o aquecimento do mercado de trabalho.
"Como estamos próximos do pleno emprego, o trabalhador tem tolerância menor com o desrespeito ao seu contrato de trabalho", diz o juiz Paulo Jakutis, do TRT-SP. "Se o empregado trabalha em um ambiente de alto ruído e não recebe protetor auricular, se está em ambiente que o coloca em situação psicológica estressante ou se é tratado de forma rude, não está mais disposto a 'engolir sapos'."
Com o desemprego em queda e a maior disputa pelo trabalhador, a empresa que não cumpre o contrato, atrasa salários ou pressiona o funcionário a cumprir metas impossíveis é questionada.
"A rescisão indireta é, nesse caso, uma forma de o trabalhador receber os benefícios como se fosse demitido sem justa causa", diz o advogado trabalhista Aparecido Inácio Ferrari de Medeiros.
DE OLHO NOS DIREITOS
O vigilante Paulo Eduardo Souza, 37, é um dos incluídos nessa estatística.
Para conseguir seus direitos trabalhistas, pediu a dispensa indireta do patrão, uma empresa terceirizada de segurança de condomínios residenciais e de hospitais.
Souza reclama de "perseguição" pela empresa de segurança, que o transferiu sucessivamente de local de trabalho, aumentando o tempo gasto no deslocamento desde sua casa, com o objetivo de forçá-lo a pedir demissão.
Ele afirma ainda que a empresa de segurança o obrigava a cumprir uma escala inviável de trabalho, com plantão noturno até meia-noite seguido, no outro dia, de jornada matutina a partir das 7h.
O trabalhador também afirma que não recebia os benefícios acertados no contrato. "Tudo começou quando apartei a briga entre dois condôminos. Um deles achou que tomei parte do outro e reclamou para a empresa."
O caso está na Justiça de São Paulo. A empresa em que trabalhava informa que Souza simplesmente abandonou o trabalho no final de novembro, o que dá motivo para demissão por justa causa.
Terceirizados e jogadores de futebol usam rescisão indireta para se demitir
Bancários, comerciários, professores universitários e trabalhadores terceirizados são exemplos de categorias que têm recorrido à rescisão indireta para conseguir o cumprimento de direitos.
Até a publicidade dada a alguns casos, como nos rompimentos de contratos de jogadores de futebol, pode ter "inspirado" os trabalhadores a pedir a rescisão indireta, segundo juízes e especialistas em mercado de trabalho.
"Os jogadores, na prática, também têm feito isso, ao pedir desligamento de clubes que não cumprem contratos", afirma Renato Henry Sant'Anna, presidente da Anamatra, associação que reúne juízes do trabalho.
"Nos casos de Ronaldinho, que deixou o Flamengo e foi para o Atlético-MG, e do goleiro Fernando Prass, que deixou o Vasco e foi para o Palmeiras, o trabalhador percebeu que é o 'dono' da bola."
SETOR PÚBLICO
A troca de prestadores de serviço no setor público federal, estadual e municipal, com o encerramento do contrato e o não pagamento de direitos trabalhistas para os empregados terceirizados do vínculo encerrado, também pode estar influenciando o ingresso de mais ações judiciais com solicitação de rescisão indireta.
O crescimento foi de 92% na comparação de 2012 (acumulado até novembro) com 2009. "A empresa que perde o contrato muitas vezes nem dispensa os empregados para não ter de pagar suas verbas rescisórias. Simplesmente fecha as portas", diz o presidente da Anamatra.
"Para conseguir seu direito, o empregado tem de entrar na Justiça e optar pelo caminho da rescisão indireta, já que houve descumprimento do contrato de trabalho, para conseguir sacar o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e pedir o seguro-desemprego."
Empresas falam em 'indústria de processos' de advogados trabalhistas
Contrárias às rescisões indiretas, empresas terceirizadas de call center, segurança e limpeza afirmam que os advogados trabalhistas promovem uma "indústria de processos" com o objetivo de ganhar um percentual do "sucesso" de eventual acordo ou de sentença favorável na Justiça do Trabalho.
Nos processos, em muitos casos, os advogados listam supostos abusos da empresa para caracterizar casos como assédio.
Nesses casos, além de conseguir os benefícios da rescisão indireta, é permitido ao trabalhador reclamar perdas por danos morais, cujos valores são superiores ao que a empresa pagaria se fosse só demissão sem justa causa basicamente o aviso prévio e a multa de 40% do saldo do FGTS.
Para defender as empresas, a estratégia dos advogados é separar o que é direito rescisório do trabalhador, que deve ser pago integralmente, e questionar a materialidade das alegações de danos morais, dificilmente comprováveis.